segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Lúcia

Ela acordou como todos os dias. Era só mais uma manhã, como todas as outras. Ela levantou e se arrumou, como sempre fez. Lúcia olhou no espelho, examinou as rugas, prendeu os cabelos, como fazia todas as manhãs. Uma ruguinha a mais no cantinho do olho, como era de se esperar. Os cabelos mais brancos cada vez que se examinava. Voltou para o quarto, arrumou a cama, bagunçada de um lado só. Hoje faziam 10 anos que o outro lado estava desocupado. Ele se cansou da falta de afeto, juntou as coisas e foi-se para sempre. Desde que começara a se relacionar com os rapazes foi assim: eles se cansavam. Até parecia que ela era incapaz de amar. Mas Júlio era diferente: ele acreditava que conseguiria mudar aquele coração de pedra. Até um casal de filhos eles tiveram. Ah, lindas crianças! Mas nem aquelas criaturinhas indefesas pareciam tocar o coração de Lúcia. Elas sempre foram ligadas ao pai: confidente eterno dos filhos, fazia o papel de mãe carinhosa. Júlio dava conselhos, se preocupava, arrumava a lancheira, e até pros bares chegou a ir com os filhos. Tudo pra agradá-los. Tudo pra fazê-los sentir confortáveis. Lúcia era indiferente: dava o dinheiro que os filhos precisavam pra sair, mal perguntava onde iam, com quem iam. Com os anos, Júlio foi cansando da inércia sentimental de Lúcia: cada dia mais se convencia de que seria impossível mudar aquela mulher. Cada dia mais se convencia de que aquele casamento não era, e nunca seria, o que ele sempre sonhou. Lúcia nunca amou Júlio. Lúcia nunca amou ninguém. Lúcia nunca amaria. Não acreditava no amor, da mesma forma que não conseguia senti-lo. A mulher abriu as janelas. Lembrou que o ex-marido reclamava que o sol estragaria os móveis. Ah, Júlio,  sempre se preocupando. Lúcia chegou a sentir algo, parecido com uma saudade distante, parecia até saudades de algo que nunca tinha realmente acontecido. A casa parecia tão vazia:  Júlio se mudou, e poucos dias depois, as crianças foram também. Augusto já estava casado, esperando a primeira criança. Maria ainda morava com pai. Lúcia fechou as janelas. O sol podia esperar um pouco mais pra entrar naquele quarto. Já na cozinha, Lúcia relembrou de todos os seus namoros. Era uma coleção de casos fracassados. Nem ela entendia porque. Os términos eram como os começos: repentinos. Lembrou-se das cartas, mensagens e ligações amorosas que recebia: mas nada chegou a afetá-la. Ela era sempre indiferente aos sentimentos. Alguns rapazes ela até chegava a sentir algum respeito, alguma admiração, mas nada que fosse suficiente para manter um relacionamento. Enquanto colocava o pão na torradeira, recordou o primeiro beijo. Ela tinha 13 anos, ele 27. Lúcia sempre foi mais madura que suas amigas - talvez a falta de sentimentos colaborasse para que isso acontecesse. Ela tinha curiosidade em saber como era, todas as suas amigas já tinham beijado, algumas até transado. Tudo escondido dos pais claro. Aquelas lembranças até arrancaram um esboço de sorriso. Mas aquele coração já era um caso perdido. Lúcia terminou seu café da manhã e não voltou a pensar no passado e na família até o telefone tocar. Era Maria. Júlio sofreu um acidente e morreu no hospital. Por mais que ela não sentisse nada de especial por ele, sentiu pena da filha. Pena era uma das únicas coisas que conseguia sentir. Infelizmente. Perguntou quando seria o velório e se Maria precisava de alguma ajuda. Augusto já haviacuidDado de tudo. Lúcia só precisaria ir ao velório pra manter as aparências, pra mostrar pra sociedade que ela era humana, que ela se importava com os filhos, e que aparentemente nutria algo pelo falecido. Tudo fachada. Não sentia nada por Júlio. Os filhos tinham um ao outro, nunca precisaram da mãe e não precisariam agora. Ir ao velório era uma questão de bons modos. E assim o fez.

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